A INCONSTITUCIONALIDADE DA REFORMA DA PREVIDÊNCIA E O CONFISCO CONTRA AGENTES PÚBLICOS

Por: Thiago Felismino – advogado administrativista no Escritório Antonio Rodrigo Advocacia Associada.

A recente Reforma da Previdência, instituída pela Emenda Constitucional nº 103/2019, estabeleceu nova forma de contribuição para o regime previdenciário dos servidores públicos.

Dentre essas inovações, estipulou, em seu artigo 1º, a alteração do artigo 149, § 1º, cuja redação determinou a promulgação de leis federal, estaduais e municipais com o fim de definir alíquotas progressivas de acordo com o valor da base de contribuição ou dos proventos de aposentadoria e de pensões para as contribuições vertidas para o Regime Próprio de Previdência Social.

Ainda que tais leis não tenham sido promulgadas pelos entes, a Emenda definiu, em seu artigo 11, regra de transição que majora a atual contribuição de 11% (onze inteiros por cento) para 14% (quatorze inteiros por cento) e fixa sua progressividade. A citada mudança, por ser irrestrita, claramente ofende conceitos constitucionais como a vedação ao não confisco e o aumento da fonte de custeio sem o respectivo aumento dos benefícios.

O CARÁTER CONFISCATÓRIO DAS CONSTRIBUIÇÕES PROGRESSIVAS

As contribuições destinadas à Previdência Social são tributos que, na classificação pentapartida esposada pelo Supremo Tribunal Federal (RE 138.284/CE) , se enquadram no conceito contribuições de seguridade social. Como tal, atraem a incidência das regras e princípios inerentes ao Direito Tributário, estes, em sua maioria, com assento constitucional dada a sua relevância.

Um dos princípios mais proeminentes dessa área é o não confisco. O Estado, pessoa de absoluto poder frente ao indivíduo, goza da prerrogativa de instituir tributos para custear seu funcionamento e viabilizar sua função precípua: a prestação de serviços públicos. Todavia, é possível que a carga tributária ultrapasse os limites do necessário e passe a adentrar, indevidamente, na seara do abuso. Para evitar essa possibilidade e dado que há tamanha importância nesse tema, o constituinte originário inscreveu a proibição do confisco na Carta Magna como cláusula pétrea , sem que seja possível qualquer alteração tendente a aboli-lo sob a égide da presente Constituição e, quiçá, segundo os defensores da transconstitucionalidade da vedação ao retrocesso, irrevogáveis até por uma nova ordem constitucional.

Vê-se, então, que a prerrogativa da instituição e cobrança de tributos é um poder-dever inerente à própria existência do Estado, mas que jamais tem justificativa para ultrapassar o limiar do absolutamente essencial para garantir seu funcionamento e o cumprimento de sua função.
Nesse sentido, contudo, não pode onerar o cidadão de tal forma que inviabilize a sua subsistência, interfira na disposição da sua força laborativa ou cerceie o seu direito à propriedade privada. Nesse sentido são as lições de Leandro Paulsen:

Não confisco como princípio para a preservação dos direitos fundamentais. A vedação do confisco vem sendo aplicada como critério para o controle de excessos tanto na imposição de tributos como de penalidades tributárias. Permite invalidar a tributação que, sendo demasiado onerosa, comprometa o exercício dos direitos fundamentais como a propriedade e o livre exercício do trabalho e da atividades econômicas.
E assim prossegue:

Conceito de confisco. Confisco é a tomada compulsória da propriedade privada pelo Estado, sem indenização. O inciso comentado refere-se à forma velada, indireta, de confisco, que pode ocorrer por tributação excessiva. Não importa a finalidade, mas o efeito da tributação no plano dos fatos. Não é admissível que a alíquota de um imposto seja tão elevada a ponto de se tornar insuportável, ensejando atentado ao próprio direito de propriedade. Realmente, se tornar inviável a manutenção da propriedade, o tributo será confiscatório.
A Emenda Constitucional em análise tem o condão de fazer incidir de forma prévia ao recebimento da remuneração dos servidores, uma alíquota conjunta máxima que pode chegar a 49,5% (quarenta e nove inteiros e cinco décimos por cento), englobando apenas dois tributos: o imposto de renda pessoa física e a contribuição previdenciária, sendo 27,5% (vinte e sete inteiros e cinco décimos por cento) do primeiro e 22% (vinte e dois inteiros por cento) do segundo.

Soma-se a esse fato a circunstância de que qualquer movimentação financeira tem parcela do seu total destinada ao custeio de mais tributos como ICMS, ISS, ITCMD, ITBI. Recortando-se a vida de um indivíduo, é possível estimar sem muito esforço que, de toda a verba recebida a título de contraprestação pelo seu labor, mais de 50% (cinquenta inteiros por cento) tenha por finalidade apenas o pagamento de tributos. Nesse contexto, queda-se clara a percepção de que a instituição de alíquotas progressivas da contribuição de seguridade social para os servidores públicos tem caráter eminentemente confiscatório.

Observe-se que, seguindo as lições acima colacionadas, não se pode analisar a situação fática de forma a isolar os tributos e verificar, um a um, se são capazes de configurar o confisco, pois este é conjuntural e abarca toda a incidência tributária que cerca o cidadão comum. A fim de ilustrar o esposado, expõe-se tabela contendo todas as alíquotas incidentes nos vencimentos dos servidores:

TRIBUTOFAIXA DE INCIDÊNCIAALÍQUOTA
IRPFR$ 0,00 a R$ 1.903,980,00%
IRPFR$ 1.903,99 a R$ 2.826,657,50%
IRPFR$ 2.826,66 a R$ 3.751,0515,00%
IRPFR$ 3.751,06 a R$ 4.664,6822,50%
IRPFacima de R$ 4.664,6827,50%
Contribuição previdenciáriaR$ 0,00 a R$ 998,007,50%
Contribuição previdenciáriaR$ 998,01 a 2.000,009,00%
Contribuição previdenciáriaR$ 2.000,01 a R$ 3.000,0012,00%
Contribuição previdenciáriaR$ 3.000,01 a R$ 5.839,4514,00%
Contribuição previdenciáriaR$ 5.839,46 a R$ 10.000,0014,50%
Contribuição previdenciáriaR$ 10.000,01 a R$ 20.000,0016,50%
Contribuição previdenciáriaR$ 20.000,01 a R$ 39.000,0019,00%
Contribuição previdenciáriaacima de 39.000,0022,00%

A Fazenda, ao promover a mudança aqui atacada, faz parecer que seus servidores não trabalham para prover o próprio sustento e o de sua família, mas quase unicamente para arcar com as despesas do Erário. Prestam, assim, um duplo múnus público, primeiro destinando sua força laboral ao Ente e, posteriormente, tendo sequestrado mais da metade do que recebe como suporte financeiro à Máquina Pública.

A posição do Supremo Tribunal Federal também há muito está assentada no sentido de configurar confisco a imposição de alíquotas progressivas para as contribuições previdenciárias de servidores públicos, diante da decisão proferida na ADI 2.010-MC [1], e

reiterada em inúmeras oportunidades, conforme trecho esclarecedor da decisão proferida pela Ministra Carmen Lúcia nos autos do AI 701.192/PR:

DECISÃO

AGRAVO DE INSTRUMENTO. PREVIDENCIÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. ALÍQUOTA PROGRESSIVA. IMPOSSIBILIDADE. JURISPRUDÊNCIA DESTE SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AGRAVO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO.

(…)

3. A decisão agravada teve como fundamento para a inadmissibilidade do recurso extraordinário a circunstância de que o acórdão recorrido estaria em harmonia com a jurisprudência deste Supremo Tribunal. 4. O Agravante argumenta que “após o julgamento da ADI 2.010-MC, ocorrido em 30.09.1999, por diversas vezes o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da cobrança da contribuição social dos servidores públicos pelo sistema de alíquotas progressivas” (fl. 4).  No recurso extraordinário, alega que o Tribunal a quo teria afrontado os arts. 40, caput, 145, § 1º, e 194, inc. V, da Constituição. Apreciada a matéria trazida na espécie, DECIDO. 5. Razão jurídica não assiste ao Agravante. Este Supremo Tribunal, em situações semelhantes, decidiu que a instituição de alíquotas progressivas para a contribuição previdenciária dos servidores públicos ofende o princípio da vedação de utilização de qualquer tributo com efeito confiscatório, nos termos do art. 150, inc. VI, da Constituição da República. Nesse sentido, os julgados seguintes: “Contribuição previdenciária sobre vencimentos de servidores em atividade: acórdão recorrido que decidiu pela inconstitucionalidade da progressividade das alíquotas, na linha do entendimento firmado pelo plenário da Corte, no julgamento da ADI MC 2.010, Celso de Mello, DJ 12/4/2002, quando se deferiu medida cautelar para suspender a eficácia do art. 2º e seu parágrafo único, da L. 9.783/99, à vista ‘do relevo jurídico da tese segundo a qual o legislador comum, fora das hipóteses taxativamente indicadas no texto da Carta Política, não pode valer-se da progressividade na definição das alíquotas pertinentes à contribuição de seguridade social devida por servidores públicos em atividade.’” (RE 386.098-AgR, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ 27.2.2004).   “RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. ALÍQUOTA PROGRESSIVA. 1. O acórdão recorrido está em consonância com o entendimento do Plenário deste Supremo Tribunal que, no julgamento da ADI 2.010-MC, assentou que a instituição de alíquotas progressivas para a contribuição previdenciária dos servidores públicos ofende o princípio da vedação à utilização de qualquer tributo com efeito de confisco (art. 150, IV, da Constituição). Tal entendimento estende-se aos Estados e Municípios. 2. Agravo regimental improvido” (RE 414.915-AgR, Relatora Ministra Ellen Gracie, Segunda Turma, DJ 20.4.2006). No mesmo sentido, as seguintes decisões monocráticas: Recurso Extraordinário n. 372.845, Relatora Ministra Ellen

Gracie, DJ 27.10.2004, Recurso Extraordinário n. 401.935, Relator Ministro Eros Grau, DJ 28.2.2005, Recurso Extraordinário n. 395.893, DJ 14.4.2005 e AI 392.021, DJ 22.3.2005, de ambos Relator o Ministro Cezar Peluso. A decisão agravada, embasada nos dados constantes do acórdão recorrido, não divergiu da jurisprudência deste Supremo Tribunal, pelo que nada há a prover quanto às alegações da parte agravante. 6. Pelo exposto, nego seguimento a este agravo (art. 557, caput, do Código do Processo Civil e art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal).

(AI 701192, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, julgado em 05/12/2008, publicado em DJe-239 DIVULG 16/12/2008 PUBLIC 17/12/2008)

Dessa feita, percebe-se que a Emenda Constitucional nº 103/2019 intentou esquivar de entendimento manso e pacífico do Supremo Tribunal Federal, o derradeiro intérprete constitucional, e aplicar instituto já reconhecidamente contrário à Carta Magna: a alíquota progressiva das contribuições previdenciárias. Tal situação deve ser rechaçada de plano pelo Poder Judiciário quando chamado a se manifestar, em respeito aos princípios constitucionais regentes da matéria e à interpretação conferida a eles pelo STF.

A IMPOSSIBILIDADE DE AUMENTO DA FONTE DE CUSTEIO SEM O RESPECTIVO AUMENTO DO BENEFÍCIO.

De sua interpretação é possível extrair que existe um paralelismo inafastável às mudanças na Seguridade Social: alteração do benefício/alteração na fonte de custeio. Isso se dá porque os tributos vertidos para a manutenção do sistema têm um caráter misto, entre o imposto e a taxa: não são contraprestacionais como o último, mas também não são não vinculados como o primeiro.

Explica-se: não há a prestação de um serviço determinado e divisível para legitimar sua cobrança, como ocorre com as taxas, mas sua destinação não é irrestrita, como é o caso dos impostos. O valor arrecadado deve ser utilizado para manter a Seguridade Social em suas três vertentes, quais sejam, a saúde, a assistência e a previdência social. Essa é a definição do princípio da referibilidade.

Dessa feita, a referibilidade das contribuições de Seguridade Social restringe a aplicação da sua receita às áreas que circundam todo esse sistema, de forma a garantir o seu adequado funcionamento. O gasto de tais valores em searas orçamentárias alheias ao escopo da segurança social, ofende frontalmente essa complexa estrutura de suporte ao indivíduo estabelecido pelo constituinte originário.

Ainda, a Previdência Social é composta pelo Regime Geral de Previdência Social e pelo Regime Próprio de Previdência Social, este último regente das aposentadorias e pensões dos servidores públicos.

Tendo em vista o supracitado binômio, não há como se admitir que a Constituição Federal seja emendada para aumentar consideravelmente a fonte de custeio sem que os benefícios provenientes dela sejam melhorados. Pelo contrário, majoritariamente os benefícios tiveram seus valores ou período de concessão diminuídos.

A Previdência Social tem como uma de suas características essenciais o fato de ser um sistema retributivo, ou seja, só tem direito a benefício aquele que contribui, salvo poucas exceções. A retributividade, então, deve ser proporcional às contribuições pagas pelo cidadão. O que as alterações constitucionais pretendem é pender a balança demasiadamente para o lado do dever sem oferecer compensação razoável para o lado do direito do contribuinte.

É possível que defensores da reforma aleguem que tais modificações tenham sido feitas para garantir o equilíbrio atuarial do RPPS, conforme estatui o artigo 40 da Carta Magna[1], tendo em vista o tão propalado déficit da previdência.

Nessa toada, importa lembrar que a Emenda Constitucional nº 93/2016, cujas alterações afetaram, entre outros, o artigo 76 do ADCT[1] para permitir a desvinculação das receitas da União no total de 30% (trinta inteiros por cento) do montante arrecadado dos tributos. Assim, a União aplica um desconto de 3/10 (três décimos) de tudo o que deveria ser utilizado para pagar os benefícios do RPPS e, posteriormente, intenta que os contribuintes arquem com essa conta. É, ao mesmo tempo, uma ofensa à referibilidade e à razoabilidade.

A desvinculação das receitas da União pode ser necessária para permitir uma margem de operacionabilidade ao governo, mas não pode ser instrumento apto a malferir todo um sistema instituído pelo constituinte originário e justificar, no futuro, como agora acontece, o repasse de responsabilidade dos governantes a um grupo de pessoas que sempre cumpriram com suas obrigações tributárias. O equilíbrio financeiro e atuarial do sistema deve ser analisado em sua completude, não se considerando apenas 70% (setenta inteiros por cento) do que é destinado para si.

Constata-se, então, que não há fato imputável aos servidores que justifique alteração na alíquota de 11% (onze inteiros por cento) praticada antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 103/2019, muito menos para, além do seu aumento, a instituição da progressividade que onerará ainda mais o contribuinte. Como a União é a única responsável pelo eventual déficit do RPPS, por utilizar as verbas destinadas a custear o sistema de forma diversa, deve ela ser a única a pagar o preço para colocá-lo novamente nos trilhos e não transferir, de forma inconstitucional, esse ônus aos seus servidores.

CONCLUSÃO

O novo panorama inaugurado pela Emenda Constitucional nº 103/2019 apoia-se em premissas equivocadas, que desenham o servidor público como o grande mal das contas públicas, mas olvida que, na verdade, qualquer desequilíbrio financeiro é resultado de décadas de más administrações por parte dos Poderes Executivo e Legislativo.

Com o objetivo de buscar um bode expiatório, promovem alteração constitucionais que vão de encontro ao que o constituinte originário inscreveu na Carta Magna, atacando direitos fundamentais impassíveis de fragilização. Nesse contexto, deve o Poder Judiciário, verdadeira salvaguarda contra as arbitrariedades do Estado, assegurar o entendimento já pacificado pelo Supremo Tribunal Federal e impedir o esmaecimento das garantias fundamentais consagradas na ordem constitucional atual.

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